UM MOMENTO HISTÓRICO DO ROCK RESTAURADO
Prólogo – Turbulências na Irlanda
do Norte
“"Rory Gallagher never forgot Northern
Ireland, he returned throughout the '70s when few other artists of his calibre
dared not come near the place”
-
Notícia publicada em um diario de Belfast.
A década de 1970 representou mais
um período de turbulência e conflitos na Irlanda do Norte, no evento histórico
que ficou conhecido na Grã-Bretanha como The
Trouble, a disputa pelo poder entre uma minoria católica (que apregoava a
independência da Irlanda do Norte do restante da Grã-Bretanha) e a maioria
protestante (que não desejava a independência).
O trágico conflito só se
resolveria décadas mais tarde, com um saldo de mortos e feridos cujos números
suscitam discussões infindáveis, coisa que a juventude local não tinha como
prever. O que a juventude local sabia é
que o país estava Mergulhado em uma espiral de violência desde o início dos
anos 1960. E que só parecia haver duas opções: ficar alheia e alienada da
instabilidade política, torcendo para que a violência que vinha a contrapeso
não lhe atingisse em cheio, ou participar ativamente da mesma.
Nem o escapismo que o rock
representava para parte dos britânicos, sob a forma de uma de suas melhores
safras (que incluía Deep Purple, Led Zeppelin, Black Sabbath, dentre outros)
era permitido - as bandas eram
fortemente aconselhadas a não pisar em solo irlandês. A escassez de ídolos
fazia com que a cena local fosse praticamente inexistente.
Em suma, futuro e esperança
pareciam palavras vazias proferidas em um horizonte tão cinzento quanto o da
cidade de Cork.
Mas seria justamente um filho do
cinzento condado de Cork que traria um pouco de orgulho e alento aos jovens irlandeses...
Rory Gallagher e o Condado Rebelde
Cork possui um passado belicoso,
de participação ativa em vários conflitos históricos, o que lhe rendeu o
apelido de Condado Rebelde. Seu nome é derivado da palavra irlandesa Corcach,
que significaria Lugar Pantanoso.
Porto de Cork |
E rebelde
e pantanoso seriam dois epítetos que definiriam bem o temperamento de seu filho
mais ilustre, o guitarrista Rory Gallagher. Rory apareceria ao mundo como o
prodigioso guitarrista de um dos Power trios seminais dos anos 1960, o Taste. Ainda
antes da virada da década, seria citado por ninguém menos que Hendrix como o provável
maior guitarrista do mundo. Daí veio a infame alcunha de Hendrix Branco, que
volta e meia acompanha as referências sobre ele. E em se tratando de
apresentações ao vivo, Rory engoliu ninguém menos que Eric Clapton quando seu
Taste abriu uma turnê do então supergrupo Blind Faith. Mas foi após a
dissolução do Taste que realmente teve início sua melhor fase, em uma carreira
solo que produziu diversos clássicos do Blues Rock, mas que tinha sua força
máxima nos shows.
Taste - Rory à esquerda |
William Rory Gallagher na verdade
nascera em Ballyshannon, em março de 1948. Mas foi criado na cidade portuária
de Cork, local que adotou como uma espécie de solo sagrado e refúgio espiritual
utilizado em diversos momentos de sua prolífica carreira. E talvez a inspiração na proverbial rebeldia
de Cork tenha sido a mola mestra para a tomada de uma decisão que quase matou
os donos da gravadora de Rory do coração.
Rory e sua inseparável Strato |
O mundo artístico poderia virar
as costas a Irlanda do Norte. Mas ele não o faria. No auge comercial de sua
carreira, ao invés de aportar nos Estados Unidos ou emendar uma turnê na
Alemanha, onde fazia imenso sucesso, Rory excursionaria por meses do ano de
1974 pelo território Irlandês. E não só o faria, como levaria consigo uma trupe
para gravar os shows, tanto fonograficamente como em vídeo, com a finalidade de
mostrar ao mundo que por trás de um país que chafurdava em sangue, existia um
povo como qualquer outro, sedento por música e tudo o que a vida pode
proporcionar de bom.
Rory tinha confiança absoluta que
tudo transcorreria bem, que haveria união em torno da música. O que ele não
podia adivinhar é que o resultado gravado dessa turnê se tornaria uma
referência em se tratando de gravações de shows de rock – sob a forma de um
disco e um filme nomeados Irish Tour ‘74.
O disco atingiria a marca de mais
de 2 milhões de cópias vendidas à época (alto para um disco duplo) e vem
constantemente sendo relançado. Sua última edição remasterizada acaba de ser
lançada aqui no Brasil. Mas enquanto o disco é sempre lembrado em listas de
clássicos absolutos do rock, pouco ou nada se ouvia falar sobre o filme de
mesmo nome.
Irish Tour '74 - o disco |
Até que recentemente o filme
original foi resgatado e remasterizado, tendo sido lançado em 2010 nos formatos
DVD e Blue-Ray Disc. Embora a versão lançada em terreno tupiniquim seja no
formato DVD, a versão analisada aqui é a do formato Blu-Ray Disc. Cabe ressaltar
que a única diferença entre as versões é a qualidade de áudio e vídeo, pois o
conteúdo é absolutamente igual.
Irish Tour ’74 – o filme
Dirigido pelo britânico Tony
Palmer, o registro da turnê não se resume a um típico apanhado de apresentações
ao vivo de um dos mais incensados combos do Blues Rock (ver vídeo abaixo, para Tattoo'd Lady).
Logo de início, temos tomadas do
agitado mar do litoral de Cork intercaladas com cenas da banda no palco, numa
versão editada da Jam de Walk on Hot Coals conhecida da versão em disco. Ainda
bem que essa música seria a única das nove registradas no vídeo a aparecer em
uma versão editada. Mas entre uma faixa e outra, encontramos trechos de
entrevistas com Rory, sempre filmadas tendo como pano de fundo locais das
cidades por onde passavam.
E o apanhado de cenas tão
naturais e descompromissadas de Rory e sua banda são o máximo do anti-Spinal
Tap que podemos imaginar. O cara já margeava os 10 milhões de discos vendidos
em sua carreira e estava lá afinando seu Dobro, enquanto o imberbe Rod De Ath
(bateria) polvilhava toneladas de talco nos pés e Gerry McAvoy (baixista) bebia
uma aparentemente saborosa cerveja. Isso tudo em uma sala que nem em sonhos
poderia ser chamada de camarim. De fundo, pode ser ouvida uma ensandecida platéia.
Pouco depois a banda entra no palco e arregaça de forma igualmente ensandecida,
e a reação do público beira o surreal. Quem assistir ao vídeo sem som vai
imaginar tratar-se de uma banda punk, tamanha a energia desprendida.
Gerry, Lou, Rory e Rod - a turma de 1974 |
Mas toda essa energia, embora
seja palpável a apreensão no rosto dos seguranças em todas as tomadas, foi
apenas canalizada em prol da música. Nenhum episódio de confusão foi notado em
qualquer das apresentações da turnê.
E se há alguma dúvida em relação
à alegria estampada no rosto de Rory e seus asseclas em tocar para a juventude
irlandesa, basta dar uma checada em um trecho do filme no qual, após a hora e
meia de show em uma das cidades, a banda inteira ruma para um pub bem fuleiro,
arma um microfone, pega um violão e se apresenta tocando músicas tradicionais
irlandesas no meio de um monte de marmanjo que tem em teor alcoólico o que
falta de dentes nas bocas registradas. Uma versão folk e fedegosamente bêbada de
uma roda de pagode, talvez.
E o que dizer da felicidade quase
palpável do público? As filmagens foram tiradas de três concertos diferentes
(Belfat’s Ulster Hall, Cork’s City Hall e Dublin’s Carlton Cinema) e as
performances registradas são todas excepcionais. Rory foi um daqueles
guitarristas que pareciam ter a capacidade de fazer a guitarra desmontar em
suas mãos, dominando ritmo e melodia de forma magistral. O galês Rod De’Ath, franzino
e com cara de menino, demonstrava uma técnica e pegada incomuns em sua bateria.
Gerry McAvoy, que viria a ser o único músico a acompanhar Rory até o fim da
carreira, é um baixista que considero bastante injustiçado. Tecnicamente beirando
a perfeição, suas linhas de baixo sabiam ser virtuosas ou funcionais, de acordo
com o caminho que o guitarrista escolhesse para a música. O tecladista Lou
Martin dosava momentos de pura virtuose com outros de absoluta calmaria. Mas o
mais importante de tudo, apesar das evidentes capacidades técnicas dos músicos,
o que salta aos olhos (e ouvidos) é o entrosamento quase telepático da banda em
improvisos tão vigorosos quanto inspirados. Nada é gratuito, e todas as versões
registradas superam em muito as originais de estúdio, vide a belíssima rendição
de A Million Miles Away (ver vídeo abaixo).
E se a qualidade musical e do
material beira o brilhantismo, o mesmo pode ser dito do tratamento visual. A
qualidade de imagem provavelmente margeia o limite de como um filme feito em
1974 pode ficar no sistema de alta definição. Já a edição e as tomadas, em
muito diferem do que encontramos hoje em dia – tomadas longas e muitas vezes
centradas nos rostos dos músicos, ajudando a dar um ar intimista que por vezes
quase torna real a empolgação e até o calor quase sufocante registrados.
Nos extras, tem-se a opção de
assistir à quase uma hora e meia do filme com comentários em áudio do baixista
Gerry com o irmão e empresário de Rory, Donàl Gallagher.
Ainda incluso nos extras, temos
um excelente mini-documentário sobre a turnê de 1972, também na Irlanda, que
inclui quase meia hora de um ótimo show em um teatro, com qualidade de vídeo
muito inferior ao material principal, mas prá lá de aceitável. Há também um
filme sobre a turnê japonesa de 1974, esse não podendo ser encarado como algo
além de um bootleg curioso, dada a péssima qualidade do vídeo.
Saldo final
Em seu interessante formato mezzo-documentário
mezzo-show, Irsih Tour ’74 cumpre o que promete: nos inserir no olho do furacão
de uma das turnês mais corajosas e inspiradas da história do rock. Para ver e
rever inúmeras vezes.
NOTA – CLÁSSICO DA CRIPTA
Ficha Técnica
Banda: Rory Gallagher
Título (ano de lançamento): Irish
Tour ‘74 (1974)
Mídia: Blu-Ray Disc (Lançamento
nacional em DVD)
Duração: 123’
Rotule como: Blues Rock, Classic
Rock
Indicado para: Qualquer um que
curta guitarras.
Passe longe se: sinceramente,
se você conseguir não curtir isso, vá correndo baixar o novo da Lady Gaga.
Conheço-o apenas por nome e histórias. Nada de sua música (tá, erro meu!). Mas prometo me redimir e correr atrás. Nesse ínterim, já que estamos na Irlanda, que tal um post sobre o magistral THIN LIZZY (esse sim, eu conheço e gosto de trás pra frente!)?
ResponderExcluirCaro Krill, também fiquei muito tempo sem conhecer o Rory, mas vale muito à pena. Sobre o Thin Lizzy, uma de minhas bandas favoritas em todos os tempos, estou em mãos com um DVD novo (lançado esse ano no Brasil) que contém cenas ao vivo e dois documentários. Em breve pinta a resenha por aqui.
ResponderExcluirAbracetas!
Trevas
Bem completinho esse post, adorei! Gueri Gueri é o canal! rs
ResponderExcluirAmo-te
Sim, sim, Pequena: Gueri Gueri é o cara!
Excluirbjos - te Amo
T
Ah, apenas um adendo ao Post:
ResponderExcluirSObre o nome de batismo de Rory, alguns podem ter estranhado o primeiro nome William...
É porque dependendo da fonte, encontra-se o William ou simplesmente Liam.
Tem até piada na internet sobre isso, afinal nesse caso nosso guitar hero ficaria com o nome do mala do Oasis - Liam Gallagher
Mas o que importa é que ele escolheu o segundo nome Rory como seu nome artístico.
Abraço
Trevas