quarta-feira, 11 de julho de 2012

Rory Gallagher – Irish Tour ‘74 (2010)



UM MOMENTO HISTÓRICO DO ROCK RESTAURADO

Prólogo – Turbulências na Irlanda do Norte

“"Rory Gallagher never forgot Northern Ireland, he returned throughout the '70s when few other artists of his calibre dared not come near the place”
-          Notícia publicada em um diario de Belfast.

A década de 1970 representou mais um período de turbulência e conflitos na Irlanda do Norte, no evento histórico que ficou conhecido na Grã-Bretanha como The Trouble, a disputa pelo poder entre uma minoria católica (que apregoava a independência da Irlanda do Norte do restante da Grã-Bretanha) e a maioria protestante (que não desejava a independência).

O trágico conflito só se resolveria décadas mais tarde, com um saldo de mortos e feridos cujos números suscitam discussões infindáveis, coisa que a juventude local não tinha como prever. O que a juventude local  sabia é que o país estava Mergulhado em uma espiral de violência desde o início dos anos 1960. E que só parecia haver duas opções: ficar alheia e alienada da instabilidade política, torcendo para que a violência que vinha a contrapeso não lhe atingisse em cheio, ou participar ativamente da mesma.

Nem o escapismo que o rock representava para parte dos britânicos, sob a forma de uma de suas melhores safras (que incluía Deep Purple, Led Zeppelin, Black Sabbath, dentre outros) era permitido -  as bandas eram fortemente aconselhadas a não pisar em solo irlandês. A escassez de ídolos fazia com que a cena local fosse praticamente inexistente.

Em suma, futuro e esperança pareciam palavras vazias proferidas em um horizonte tão cinzento quanto o da cidade de Cork.

Mas seria justamente um filho do cinzento condado de Cork que traria um pouco de orgulho e alento aos jovens irlandeses...

Rory Gallagher e o Condado Rebelde

Cork possui um passado belicoso, de participação ativa em vários conflitos históricos, o que lhe rendeu o apelido de Condado Rebelde. Seu nome é derivado da palavra irlandesa Corcach, que significaria Lugar Pantanoso.

Porto de Cork

E rebelde e pantanoso seriam dois epítetos que definiriam bem o temperamento de seu filho mais ilustre, o guitarrista Rory Gallagher. Rory apareceria ao mundo como o prodigioso guitarrista de um dos Power trios seminais dos anos 1960, o Taste. Ainda antes da virada da década, seria citado por ninguém menos que Hendrix como o provável maior guitarrista do mundo. Daí veio a infame alcunha de Hendrix Branco, que volta e meia acompanha as referências sobre ele. E em se tratando de apresentações ao vivo, Rory engoliu ninguém menos que Eric Clapton quando seu Taste abriu uma turnê do então supergrupo Blind Faith. Mas foi após a dissolução do Taste que realmente teve início sua melhor fase, em uma carreira solo que produziu diversos clássicos do Blues Rock, mas que tinha sua força máxima nos shows.

Taste - Rory à esquerda
William Rory Gallagher na verdade nascera em Ballyshannon, em março de 1948. Mas foi criado na cidade portuária de Cork, local que adotou como uma espécie de solo sagrado e refúgio espiritual utilizado em diversos momentos de sua prolífica carreira.  E talvez a inspiração na proverbial rebeldia de Cork tenha sido a mola mestra para a tomada de uma decisão que quase matou os donos da gravadora de Rory do coração.

Rory e sua inseparável Strato
O mundo artístico poderia virar as costas a Irlanda do Norte. Mas ele não o faria. No auge comercial de sua carreira, ao invés de aportar nos Estados Unidos ou emendar uma turnê na Alemanha, onde fazia imenso sucesso, Rory excursionaria por meses do ano de 1974 pelo território Irlandês. E não só o faria, como levaria consigo uma trupe para gravar os shows, tanto fonograficamente como em vídeo, com a finalidade de mostrar ao mundo que por trás de um país que chafurdava em sangue, existia um povo como qualquer outro, sedento por música e tudo o que a vida pode proporcionar de bom.

Rory tinha confiança absoluta que tudo transcorreria bem, que haveria união em torno da música. O que ele não podia adivinhar é que o resultado gravado dessa turnê se tornaria uma referência em se tratando de gravações de shows de rock – sob a forma de um disco e um filme nomeados Irish Tour ‘74.

O disco atingiria a marca de mais de 2 milhões de cópias vendidas à época (alto para um disco duplo) e vem constantemente sendo relançado. Sua última edição remasterizada acaba de ser lançada aqui no Brasil. Mas enquanto o disco é sempre lembrado em listas de clássicos absolutos do rock, pouco ou nada se ouvia falar sobre o filme de mesmo nome. 

Irish Tour '74 - o disco
Até que recentemente o filme original foi resgatado e remasterizado, tendo sido lançado em 2010 nos formatos DVD e Blue-Ray Disc. Embora a versão lançada em terreno tupiniquim seja no formato DVD, a versão analisada aqui é a do formato Blu-Ray Disc. Cabe ressaltar que a única diferença entre as versões é a qualidade de áudio e vídeo, pois o conteúdo é absolutamente igual.

Irish Tour ’74 – o filme

Dirigido pelo britânico Tony Palmer, o registro da turnê não se resume a um típico apanhado de apresentações ao vivo de um dos mais incensados combos do Blues Rock (ver vídeo abaixo, para Tattoo'd Lady).



Logo de início, temos tomadas do agitado mar do litoral de Cork intercaladas com cenas da banda no palco, numa versão editada da Jam de Walk on Hot Coals conhecida da versão em disco. Ainda bem que essa música seria a única das nove registradas no vídeo a aparecer em uma versão editada. Mas entre uma faixa e outra, encontramos trechos de entrevistas com Rory, sempre filmadas tendo como pano de fundo locais das cidades por onde passavam.

E o apanhado de cenas tão naturais e descompromissadas de Rory e sua banda são o máximo do anti-Spinal Tap que podemos imaginar. O cara já margeava os 10 milhões de discos vendidos em sua carreira e estava lá afinando seu Dobro, enquanto o imberbe Rod De Ath (bateria) polvilhava toneladas de talco nos pés e Gerry McAvoy (baixista) bebia uma aparentemente saborosa cerveja. Isso tudo em uma sala que nem em sonhos poderia ser chamada de camarim. De fundo, pode ser ouvida uma ensandecida platéia. Pouco depois a banda entra no palco e arregaça de forma igualmente ensandecida, e a reação do público beira o surreal. Quem assistir ao vídeo sem som vai imaginar tratar-se de uma banda punk, tamanha a energia desprendida.

Gerry, Lou, Rory e Rod - a turma de 1974
Mas toda essa energia, embora seja palpável a apreensão no rosto dos seguranças em todas as tomadas, foi apenas canalizada em prol da música. Nenhum episódio de confusão foi notado em qualquer das apresentações da turnê.

E se há alguma dúvida em relação à alegria estampada no rosto de Rory e seus asseclas em tocar para a juventude irlandesa, basta dar uma checada em um trecho do filme no qual, após a hora e meia de show em uma das cidades, a banda inteira ruma para um pub bem fuleiro, arma um microfone, pega um violão e se apresenta tocando músicas tradicionais irlandesas no meio de um monte de marmanjo que tem em teor alcoólico o que falta de dentes nas bocas registradas. Uma versão folk e fedegosamente bêbada de uma roda de pagode, talvez.

E o que dizer da felicidade quase palpável do público? As filmagens foram tiradas de três concertos diferentes (Belfat’s Ulster Hall, Cork’s City Hall e Dublin’s Carlton Cinema) e as performances registradas são todas excepcionais. Rory foi um daqueles guitarristas que pareciam ter a capacidade de fazer a guitarra desmontar em suas mãos, dominando ritmo e melodia de forma magistral. O galês Rod De’Ath, franzino e com cara de menino, demonstrava uma técnica e pegada incomuns em sua bateria. Gerry McAvoy, que viria a ser o único músico a acompanhar Rory até o fim da carreira, é um baixista que considero bastante injustiçado. Tecnicamente beirando a perfeição, suas linhas de baixo sabiam ser virtuosas ou funcionais, de acordo com o caminho que o guitarrista escolhesse para a música. O tecladista Lou Martin dosava momentos de pura virtuose com outros de absoluta calmaria. Mas o mais importante de tudo, apesar das evidentes capacidades técnicas dos músicos, o que salta aos olhos (e ouvidos) é o entrosamento quase telepático da banda em improvisos tão vigorosos quanto inspirados. Nada é gratuito, e todas as versões registradas superam em muito as originais de estúdio, vide a belíssima rendição de A Million Miles Away (ver vídeo abaixo).


E se a qualidade musical e do material beira o brilhantismo, o mesmo pode ser dito do tratamento visual. A qualidade de imagem provavelmente margeia o limite de como um filme feito em 1974 pode ficar no sistema de alta definição. Já a edição e as tomadas, em muito diferem do que encontramos hoje em dia – tomadas longas e muitas vezes centradas nos rostos dos músicos, ajudando a dar um ar intimista que por vezes quase torna real a empolgação e até o calor quase sufocante registrados.

Nos extras, tem-se a opção de assistir à quase uma hora e meia do filme com comentários em áudio do baixista Gerry com o irmão e empresário de Rory, Donàl Gallagher.

Ainda incluso nos extras, temos um excelente mini-documentário sobre a turnê de 1972, também na Irlanda, que inclui quase meia hora de um ótimo show em um teatro, com qualidade de vídeo muito inferior ao material principal, mas prá lá de aceitável. Há também um filme sobre a turnê japonesa de 1974, esse não podendo ser encarado como algo além de um bootleg curioso, dada a péssima qualidade do vídeo.

Saldo final

Em seu interessante formato mezzo-documentário mezzo-show, Irsih Tour ’74 cumpre o que promete: nos inserir no olho do furacão de uma das turnês mais corajosas e inspiradas da história do rock. Para ver e rever inúmeras vezes.

NOTA – CLÁSSICO DA CRIPTA

Ficha Técnica
Banda: Rory Gallagher

Título (ano de lançamento): Irish Tour ‘74 (1974)

Mídia: Blu-Ray Disc (Lançamento nacional em DVD)

Duração: 123’

Rotule como: Blues Rock, Classic Rock

Indicado para: Qualquer um que curta guitarras.

Passe longe se: sinceramente, se você conseguir não curtir isso, vá correndo baixar o novo da Lady Gaga.










5 comentários:

  1. Conheço-o apenas por nome e histórias. Nada de sua música (tá, erro meu!). Mas prometo me redimir e correr atrás. Nesse ínterim, já que estamos na Irlanda, que tal um post sobre o magistral THIN LIZZY (esse sim, eu conheço e gosto de trás pra frente!)?

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  2. Caro Krill, também fiquei muito tempo sem conhecer o Rory, mas vale muito à pena. Sobre o Thin Lizzy, uma de minhas bandas favoritas em todos os tempos, estou em mãos com um DVD novo (lançado esse ano no Brasil) que contém cenas ao vivo e dois documentários. Em breve pinta a resenha por aqui.
    Abracetas!
    Trevas

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  3. Bem completinho esse post, adorei! Gueri Gueri é o canal! rs

    Amo-te

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  4. Ah, apenas um adendo ao Post:
    SObre o nome de batismo de Rory, alguns podem ter estranhado o primeiro nome William...
    É porque dependendo da fonte, encontra-se o William ou simplesmente Liam.
    Tem até piada na internet sobre isso, afinal nesse caso nosso guitar hero ficaria com o nome do mala do Oasis - Liam Gallagher
    Mas o que importa é que ele escolheu o segundo nome Rory como seu nome artístico.
    Abraço
    Trevas

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